segunda-feira, 21 de março de 2011

A derradeira queda de Ícaro



Ícaro era filho de Cronos (o próprio tempo) e de uma escrava de Perséfone (aquela que ficara indecisa entre mundos). Como qualquer filho, Ícaro era avesso aos modos dos pais; portanto, um jovem afoito, apressado e ansioso por deixar o que era o seu bem conhecido mundo. Ele tinha sonhos de grandeza e conquista: alcançar o inalcançável.

Para realizar os sonhos de Ícaro, seu pai criou, em penas e cera de abelhas, um grande par de asas. Contudo, advertiu ao jovem que fosse comedido: que evitasse a arrogância de encarar o grande Astro Rei olhos nos olhos e que evitasse fitar de perto os grandes mares com sua fria e discreta profundidade. História ainda mais antiga que a dos gregos é a de filhos que pouco caso fazem das palavras do pai. Tão sábios e perspicazes se imaginam estes jovem...

Ícaro se denominou Senhor dos Céus, causando inveja até ao próprio Zeus, tamanha a naturalidade e elegância com que o jovem rasgava o leve azul e fluía entre as nuvens.  Contudo, nenhuma liberdade em demasia é mantida impune, nenhum privilégio prevalece sem um preço.  Zeus mandou que seu filho Apolo conduzisse a carruagem dos céus e levasse o jovem imprudente ao acerto de contas. Ícaro, em sua teimosia, mal percebeu que arriscava as asas e a vida. O inevitável ocorreu e, gota a gota, a cera das asas caia ao mar: lágrimas de um sonho que se desfez.  Quando o jovem se conscientizou do fato, já era tarde para qualquer prudência. Ícaro, pateticamente, batia desesperadamente os braços, que já não possuía uma única pena para apaziguar a voraz gravidade. O jovem era atraído para seu destino com o inverso do quadrado da distância do fim.

Pela última vez, Ícaro rasgou, rodopiou e sinalizou no céu, mas agora sem a graça de outrora. Ele aprendeu que para todo aquele que alcança o seu Apogeu, nada mais resta que conformar-se da proporcional e vertiginosa queda. Contudo, os poucos que testemunhavam os últimos instantes de Ícaro, acreditavam ter visto claramente um sorriso no rosto do azarado rapaz e de alguma forma ele emanava paz.  Fato que era completamente incompreensível para aqueles que o observavam. Afinal, eles sempre foram  apenas homens que jamais ousaram tirar os pés do chão daquela poeirenta vida rotineira e, portanto, não podiam conceber o engrandecimento de alcançar todo o seu potencial, mesmo que para isso fosse inevitável a derradeira queda.

terça-feira, 8 de março de 2011

O Equilíbrio de Penélope

A  uma  mocinha.



Quase toda aventura se inicia ao deixar a casa. Enfrentar o grande mundo a nossa frente, buscar aquilo que muitas vezes nem sabemos muito bem o que é, mas é exatamente o que nos inspira a partida. Quase toda aventura é sobre conquistar algo que nos aguarda e, quase sempre, não se sabe ao certo se pode ser encontrado e, até mesmo,  obtido.  Contudo, uma das mais épicas aventuras já relatadas trata exatamente do trajeto inverso: uma busca pelo retorno ao lar! Eu falo da grande Odisseia de Ulisses. Nesta triunfal história, o protagonista Ulisses enfrenta diversos desafios, monstros e Deuses para voltar a sua sonhada Ítaca; ilha na qual era o rei por direito.

Pessoalmente, admiro as proezas de Ulisses, mas não o considero a figura mais interessante de Odisseia. De fato, a personagem mais carismática é Penélope. Muitas vezes, ela é retratada como uma figura passiva: apenas a esposa que aguarda pacientemente o retorno do marido. Todavia, Penélope é muito mais...  Ela é o pilar que mantem a ilha de Ítaca como o lugar para o retorno de Ulisses.  Ela é a inspiração que sempre faz Ulisses vasculhar mais fundo por forças para superar todos os desafios de seu percurso amaldiçoado.  

Penélope é o Principio e o Fim: Ela é o grande motivo pelo qual Ulisses inicia sua viagem de retorno a casa e também o “prêmio” pelo qual ele luta a todo instante. A aventura de Ulisses não termina nos braços de sua amada em um implícito ‘felizes para sempre’?

Penélope não é uma mulher passiva, muito pelo contrário, é a mulher de atitude que equilibra a ilha e permanece no controle, mesmo com tantos abutres tentando se aproveitar e assumir o posto de seu ausente Ulisses.  Penélope não precisava de nenhum substituto impostor, pois ela se mantém fiel à esperança do retorno do marido; firme em suas convicções. Com este objetivo, ela usou de todo a sua inteligência e, até mesmo, a sua malícia para enfrentar a oposição ao seu esposo. Pobres homens que tão pouca defesa tem contra a malícia feminina: caímos, pateticamente, em seus caprichos e nos submetemos a sua vontade...  Assim, Penélope continuou senhora de Ítaca e lutou ativamente, ao seu modo, pelo retorno de seu amado Ulisses.

Penélope foi o farol, que sempre aceso, trouxe os Argonautas através dos terríveis mares e permitiu que Ulisses aportasse em sua desejada ilha. Penélope foi a agulha da bússola que, mantida no coração de Ulisses, sempre mostrou qual deveria ser o seu caminho: o retorno triunfante aos braços de sua amada.

Bem aventuradas sejam todas as modernas ‘Penélopes’ que tornam nossas vidas interessantes, nos inspiram e nos dão o incentivo de vermos o mais brilhante Sol, mesmo quando existem tantas nuvens escuras no céu.  Louvores às ‘Penélopes’ que conseguem desenterrar sorrisos de nossos corações, mesmo quando a vida nos afunda nas tristezas das  pequenas ingratidões do cotidiano.  Benditas as ‘Penélopes’ que sempre nos recordam que acima de qualquer conquista solitária que possamos ter,  a maior de todas as conquistas sempre será aquela ‘Penélope’ de nossa vida a tecer o nosso futuro e nos amparar em sua rede de compreensão, otimismo e força. 

quarta-feira, 2 de março de 2011

A escolha de Pigmaleão.




Pigmaleão, poderoso rei do Chipre, tinha domínio sobre toda a sua terra e assim podia controlar o destino de cada ser que nela vivia. Contudo, o rei bem observou que a vontade humana estava acima de qualquer controle. Nenhum Rei jamais ousou dizer-se dono do livre arbítrio, não é?

Não é conhecido quem feriu o rei e a que dor foi submetido. Porém, o traumatizou de tal modo que apagou dele a esperança nas mulheres... Seu repudio ao gênero feminino foi tamanho que criou o seu próprio reino de solidão.  Tal como Chipre era uma ilha isolada do mundo pelo mar Mediterrâneo, também o rei se fez ilha  e se isolou protegido pelo marfim; matéria prima para suas criações.

Em seus sonhos na busca pela mulher perfeita, resolveu moldá-la com suas próprias mãos. Foi um escultor tão zeloso que realizou um trabalho melhor que qualquer deus jamais havia conseguido.  Pigmaleão extraiu do marfim a imagem da mulher mais perfeita que superava qualquer outra já vista ou imaginada. Talvez a resposta sobre o sucesso de Pigmaleão, não esteja no entender bem de perfeição (matéria da qual são feitos os deuses), mas em vivenciar o imperfeito e recusar veementemente tudo aquilo que viveu.

Pigmaleão que havia se tornado prisioneiro de sua obsessão na arte de moldar marfim, encontrou cárcere ainda mais letal: escravo da paixão desenfreada pela estátua! Amou de todo corpo e alma aquela que moldou com suas próprias mãos. Amar a estátua, de fato, era tarefa fácil e até compreensível... Ter tal amor correspondido, isto apenas em devaneios insanos. Pigmaleão orou e implorou que alguém entre os deuses pudesse permitir que tal amor se concretizasse.

Afrodite, que não é a deusa da sabedoria, mas conhece bem a loucura humana oriunda da paixão e também sabe que razão nenhuma prevalece quando o coração pulsa.  Apiedou-se daquele homem que não encontrando no mundo a sua volta quem o satisfizesse, distorceu de próprio punho a realidade para criar algo que ia além do que poderia qualquer outro sonhar.  A bondosa deusa concedeu que o frio e rijo marfim fosse convertido em flexível e quente carne de uma mulher espelhada no sonho do habilidoso artesão.

Para a imensa alegria de Pigmaleão, a estátua tornou-se tão real e cheia de vida quanto ele.  Galatea foi o nome dado a tal mulher, que não surgiu de encantos e de uma costela dele, mas de seu árduo trabalho sobre o marfim. Com Galatea, o rei Pigmaleão casou-se, teve filho e viveu ‘feliz’, pois assim que deve ser toda história que vira lenda.

Quem pode recriminar Pigmaleão por preferir a perfeita realidade que criou com o olhar de seus sonhos à crua  trivialidade que a imperfeição nos joga todos os dias?